domingo, janeiro 29, 2006

Mas passemos à história, que esta narrativa já vai longa e vós, nobre leitor, estais tão ansioso por sabê-la como eu por contá-la.
Rosalina era uma moça jovem de seus dezanove ou vinte anos, rica de carnes, grelo estreito, seios férteis e volumosos. Rapariga prendada que dominava as artes da leitura e da escrita, de trautear melodias na flauta e de carregar nas teclas do carrilhão que animava a missa, todos os domingos de manhã e sábados à tarde, era ainda tutora de uma turma de catequese, com miúdos entre os catorze e os quinze anos. Era pois, uma moça feliz.
Rosalina vivia na bela e antiga aldeia de Barqueiros, terra de gente rija e de tradições, de povo honrado e temente a Deus. Na sua maioria pescadores de muitas marés, os homens de Barqueiros toleravam pouco a intromissão de estranhos no seu meio. No entanto, por obra e graça do destino e das designações da divina providência, o pároco local, amigo dos copos, canecas, garrafões e pipas de bom vinho, encontrou a morte como consequência de uma prolongada e devastadora cirrose. O bispo de Guimarães, D. Ansião da Pina, perante tal fatalidade não hesitou e tomou a decisão pela qual o povo clamava: chamou o irrascível e sagaz Padre Maciel, famoso pelos métodos pouco ortodoxos, mas eficazes que utilizava para pregar a palavra de Deus.
A chegada de Maciel a Barqueiros, ao vigésimo primeiro dia do mês de Julho de mil oitocentos e três, revestiu-se de grande pompa e circunstância . As gentes da aldeia vestiram as suas roupas domingueiras, obrigaram as crianças a calçar os seus melhores sapatos, de mantas encheram as janelas e de erva doce e rosmaninho os caminhos de Barqueiros.
Maciel, com a sua postura firme e erecta, o seu cabelo irrepreensivelmente penteado com brilhantina, a todos sorria e a todos dava cumprimentos e abraços, inspirando desde logo confiança e amizade no povo da terra. Depois da má experiência com o anterior padre, ao novo sacerdote vaticinava-se uma carreira próspera e pura, dentro dos mais rígidos parâmetros da moral cristã.

terça-feira, janeiro 24, 2006


1º Episódio - Rosalina de Barqueiros


Esta história foi passada ao papel durante muitos, longos e árduos dias, o primeiro dos quais quando eram passados oito dias no sexto mês do ano da graça de mil novecentos e noventa e cinco, data essa que, pelos mais altos desígnios da divina providência, havia de ficar tão célebre como o milagre de Fátima, tão falada e comentada como o casamento de sua alteza, El-Rei Dom Duarte de Bragança. Os vindouros falariam desse dia como se de uma viragem histórica se tivesse tratado, como se nada mais de marcante ou heróico houvesse para contar neste país pequeno de terras e de número de gentes, mas grande de almas e de nobreza, bem como de espírito de resistência e abnegação voluntária, tão férteis e comuns no nosso povo. Vou-vos falar de algo de que poucos tomaram conhecimento ao tempo da sua realização, de algo que de timidez e de excitação fez levantar a celestial verga de todos os santos que povoam o mui nobre mosteiro dos Jerónimos, de algo que, segundo as mais ousadas crónicas, fez erguer até o sagrado carcamano de Nosso Senhor Jesus Cristo, que ele também foi homem deste tipo de sensações e imprevisibilidades, não tivesse ele sido humano durante 33 anos.

"Maciel, ou a vã glória de enrabar"

Mais ágil que um marsupial, devastador como o mais maquiavélico dos bandidos, Maciel era falado em todo o Reino por graça das suas artes de galanteamento e da sua bondade no mais íntimo dos segredos, que é o da confissão. Era uma figura distinta, o célebre padre: a sua fronte serena e calma, parca de borbulhas e de outros defeitos da carne, não deixava transparecer os sentimentos de volúpia e relações carnais que a toda a hora percorriam o universo das suas ideias. Alto e esguio, apenas se notando uma protuberância saliente da batina de cada vez que as devotas lhe pediam aconselhamento ou a purificação reconfortante da sua benção, o pároco era uma lenda viva que calcorreava os altares e sacristias do séc. XIX. Filósofo nestas questões, Maciel não se considerava um pecador, antes mesmo se achava um modelo a seguir, um paradigma para jovens seminaristas, um exemplo para garanhões em início de carreira, que os mais velhos possuem já técnicas e artimanhas por demais desenvolvidas. Curiosamente (ou talvez não, se tivermos em conta os fraternais laços de amizade que uniam o prior Maciel à Raínha de Portugal), o heróico padre nunca fizera parte de um auto-de-fé, senão como instigador das achas da fogueira, ou como clemente pelos pecados dos outros ou outras.
Era um típico caso de justiceiro social este padre, que tanto ajoelhava entre as suas pernas a mais nobre dama da corte, como punha de gatas e a gemer com satisfação a mais plebeia das megeras. Lábios doces, pintados e perfumados se abriam para sentir cada variz do pau de sobreiro de Maciel, como lábios feios, secos e gretados o receberam com igual prazer, sem que isso desse menos gozo ou prazer ao concupiscente sacerdote. Maciel não desejava, acima de tudo, que o conotassem com São José (como aliás se fazia na época, em relação a outros sacerdotes, menos hábeis nas artes da persuasão e do engate), que ele foi marido de mulher que atingiu a maternidade sem perder a virgindade, para isso precisando unicamente da semente que Deus lhe teria incutido, ao invés do produto da masculinidade do seu marido. Que este assunto de as virgens parirem é controverso, lá isso é, e é esse o motivo que Maciel encontrou para as desflorar a todas, para que elas, sendo virgens não corram o risco de filhos parir, desonrando assim as virtudes de seus maridos ou amantes.